"Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida.
Relembro, e uma angústia
espalha-se por mim como um frio no corpo, ou um medo.
O irreparável do meu passado, esse é que é o cadáver.
Todos os outros cadáveres podem ser ilusão.
Todos os mortos podem ser vivos noutra parte.
E todos os meus momentos passados podem existir algures,
na ilusão do espaço e do tempo,
na falsidade do decorrer.
Se em certa altura
tivesse voltado à esquerda em vez de à direita;
se em certo momento
tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;
se em certa conversa
tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro…
Se tudo isso tivesse sido assim,
seria outro hoje e talvez o universo inteiro
seria insensivelmente levado a ser outro também.
Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido,
nem pensei em virar e só agora o percebo.
Mas não disse não, ou não disse sim,
e só agora vejo o que não disse.
As frases que faltaram nesse momento
surgem-me agora,
claras, inevitáveis, naturais,
a conversa fechada concludentemente,
a matéria toda resolvida…
Mas só agora o que nunca foi,
que nunca foi,
nem será para trás,
me dói."
O IRREPARÁVEL
Álvaro de Campos
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